Os Pecados da Outra

Cotidiano

E Odete andava muito preocupada com a prima que morreu.

Irene, a prima, foi acometida pelo mal de Alzheimer e passou anos sem saber quem era até que foi desta para melhor.

Mas Odete ficava mais aflita a cada dia, pois estava preocupada com a prima que não havia feito sua última confissão, já que o Alzheimer a impedia de se lembrar dos “seus erros em vida”. Tudo o que Odete queria era falar com um padre e perguntar se ela, Odete, poderia fazer uma confissão em nome de Irene ! Nem Gabriel Garcia Márques imaginaria uma cena com tamanho surrealismo.

“Mas ela recebeu a extrema-unção…” disse alguém.

– Não importa, retrucou ela. Ela nem sabia o que estava acontecendo nessa hora. Aliás, ela já estava morta…
– A questão, continuou Odete, era que ela deveria ter confessado seus pecados quando ainda tinha consciência disso.

“Essa é uma das únicas vantagens do Alzheimer. A pessoa não sabe de nada…” ponderou o mesmo alguém.

Mas Odete estava determinada a fazer Irene entrar no Céu perdoada de todos os seus pecados, com ou sem extrema-unção. Afinal, Odete foi a última pessoa que Irene ainda se lembrava.

“Mas, Odete, quem disse que ela ainda tinha pecados a confessar ?”, disse o alguém.

– Eu a conhecia muito bem. Desde que nasci e era a minha melhor amiga ! Claro que ela tinha pecados e eu conhecia todos eles muito bem !

Essa preocupação tomou conta da vida de Odete a ponto de, sempre que ia à missa, ela dizia: “Eu preciso falar com o padre e confessar os pecados de Irene. A Irene não pode ficar assim”.

Essa quase obrigação pontuou suas idas à igreja até que o alguém, já entediado com essa tônica, disparou:

“Será que, se fosse o inverso, você gostaria que a Irene contasse seus pecados, mesmo para um padre ?”

Odete, visivelmente constrangida, ficou sem saber o que falar. Deve estar assim até agora.

NE – “Os Pecados da outra”, 2013, é um romance de Mário Lopes Marinho.

 

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