A Lancha Maestro
No dia 28 de janeiro de 2021, cinco amigos partiram do Rio de Janeiro com o objetivo de chegar a Fortaleza, a bordo da lancha “O Maestro“, assim batizada porque o seu primeiro dono fora o famoso regente de orquestras sinfônicas Isaac Karabtchevsky. Infelizmente o barco afundou na noite do dia 29 levando consigo o sonho de uma vida do empresário Ricardo Kirst e a morte de todos os cinco tripulantes.
Sobraram perguntas e, entre elas, quais os erros cometidos por eles, marinheiros experientes e empresário bem sucedido, que contribuíram para o afundamento daquele barco ?
Em primeiro lugar, não havia bote, balsa, boias, nem coletes salva-vidas no barco. O equipamento de salvatagem, que garante a sobrevivência por dias em caso de naufrágio, nos leva a outra questão: se não havia esse equipamento, como eles tinham licença de navegação ?
Certamente eles não deviam ter a licença e ela é fundamental para que a embarcação possa sair da marina ou iate clube. A licença é emitida pela Marinha, após rigorosa vistoria especialmente quanto aos equipamentos de salvatagem. Todas as boias, coletes, botes e tudo o mais devem ser gravados com o nome do barco, em tinta não lavável, para evitar espertinhos que os reaproveitam em outros locais.
Parece que o único plano de navegação que eles tinham era o de ir do Rio de Janeiro a Fortaleza, sem escalas no caminho. Seriam mais de 3.000 quilômetros de travessia no mar e as paradas são sempre muito importantes: para avaliar as condições do tempo, para descansar (tripulação e barco), para consertar, para reabastecer, para aprender… Tudo isso foi, ao que parece, relevado.
Eles devem ter confiando apenas na experiência do capitão, Guilherme Ambrósio do Nascimento, que já conhecia a rota. Ao que tudo indica, eles se limitaram a seguir a costa, sem fazer um planejamento de verdade do roteiro. Muita gente dizia que o empresário planejou essa viagem durante anos. Talvez essas pessoas, ou ele mesmo, tenham confundido “sonhar” com “planejar”; planejar significa que, ao sair de algum lugar para o outro, deve-se estudar cuidadosamente as cartas náuticas desse trecho para saber onde estão localizados os eventuais locais para paradas técnicas como mecânico, água doce, combustível, comida, abrigo, médicos… E ter certeza de que esses locais estejam próximos o suficiente para serem alcançados a tempo em caso de emergência.
Segundo o comodoro/proprietário da Marina de onde partiram, eles não fizeram a revisão da lancha, especialmente dos motores, já que ela estava parada numa carreta fora da água havia dois anos. Logo que deixaram a baía, um dos motores parou. Encontraram um mecânico próximo (não retornaram até a Marina), resolveram o problema e seguiram viagem. Isso deve ter sido um aviso Divino que eles desprezaram.
E tem a questão do tempo; hoje em dia, a previsão do tempo é bastante confiável. Até os anos 1990, as previsões não eram nada confiáveis e só se sabia com certeza mesmo sobre as tendências do que poderia ser uma previsão do tempo. Até os jornais mostravam a previsão do tempo com a foto de satélite mostrando o Brasil meio de lado, sem aparecer o Oceano Atlântico. Essas imagens eram fornecidas por satélites norte-americanos que estavam mais preocupados com as condições do Oceano Pacífico. Mas era preciso acreditar nela e checar frequentemente as condições do tempo naquele trecho.
E o peso extra que pouca gente falou ? Eles estavam carregando doze tambores de óleo diesel, de 50 litros cada, para não precisar parar até Fortaleza. Além do que já comentei, eu não imagino que conta eles fizeram para concluir que chegariam em Fortaleza com aquela quantidade de combustível. Também não consideraram o enorme peso extra que esses tambores acarretariam na embarcação. Com tudo isso, a velocidade de cruzeiro deve ter caído vários nós. Você até pode arriscar e colocar vinte pessoas para ir ali passear e voltar, mas não dá pra levar esse peso todo numa viagem de 3 mil quilômetros. É forçar demais !
Quem tem barco, sabe: para ir do ponto “A” ao ponto “B”, existem procedimentos obrigatórios (pessoalmente ou por rádio). Um deles é informar ao ponto “A”, Iate Clube ou Marina, que a embarcação tal está saindo em direção ao ponto “B”, com tantas pessoas a bordo e previsão de chegada a tal hora. O ponto “A” informa tudo isso ao ponto “B”, que mantém um evento aberto dessa viagem. Ao chegar no ponto “B”, a embarcação informa a chegada, o ponto “B” informa ao ponto “A” e o evento é fechado. Simples !
Essa viagem sem escalas, os obrigaram a viajar à noite, que é sempre temerário, mesmo com noite clara. Além de vários perigos, os pescadores estendem as redes por centenas de metros, desligam os motores e apagam as luzes do barco para não assustar o cardume. Com isso, há o risco de “pegar” a rede ou mesmo bater no pesqueiro. Imagine ter que mergulhar no meio da noite para tirar uma rede emaranhada nos hélices – ou nos lemes, se é que ficaram inteiros.
A esposa do empresário que adquiriu a lancha, declarou que ele “planejou a viagem por cinco anos” e ele teria “pesquisado bastante sobre embarcação antes de comprar“. Não duvido, mas ele não fez o devido planejamento da viagem, como já citei, e se preocupou mais com o barco. Isso está na cara.
Na madrugada do dia 29, sem nenhum motor, com ventos fortes, mar virado e em algum ponto próximo ao Cabo de São Thomé, eles ainda tentaram soltar a âncora para manter o barco flutuando. As últimas palavras de um dos tripulantes no rádio foram: “Estamos indo para o mar” – sem bote, sem balsa, sem boias, nem coletes salva-vidas. Dez dias depois, o último dos cinco corpos foi resgatado. Todos haviam morrido afogados.
São eles:
Ricardo José Kirst, empresário gaúcho;
Domingos Sávio Ribeiro, empresário;
Wilson Martins, pescador;
José Cláudio de Sousa Vieira, mecânico;
Guilherme Ambrósio do Nascimento, comandante;
Infelizmente, nada deu certo.
NOTAS:
– Sempre ouvi que quem afunda barco é o dono. O marinheiro dificilmente faz essas barbeiragens. O que se sabe desse acidente, é que o dono queria chegar logo a Fortaleza e deve ter assumido os riscos – e os lemes. Essa é apenas uma opinião de mestre amador que fui, sem investigações, seguindo meus instintos de um passado em que naveguei bastante com lanchas a motor – e aprendi muito.
– Em 8 de fevereiro de 2021, a Capitania dos Portos de Macaé, informou que um pesqueiro recolheu uma peça, a cerca de 7,5 milhas do Farol de São Tomé. A Capitania informou que essa peça era, provavelmente, parte do deck da lancha “O Maestro”.
– Em agosto de 2014, veleiro Tunante II afundou e quatro argentinos desapareceram no mar, próximo da costa do Rio Grande do Sul, vítima de uma violenta tempestade que eles sabiam que estava vindo. O desaparecimento causou comoção nacional na Argentina e seus corpos jamais foram encontrados.
Texto de Renzo Grosso