Cuidado Com O Que Você Pede…

Contos

Crônica de Luis Fernando Veríssimo

– Pô, Luana.
– Não chega nem perto.
– Mas estamos só você e eu nesta ilha. E estaremos aqui pelo resto de nossas vidas.
– Vai ler o teu livro, vai. Você não disse que era o seu favorito?
– Mas eu já li o livro várias vezes.
– Então vai ouvir o teu disco e me deixa em paz.
– Com que aparelho? Nesta ilha não tem eletricidade. Nesta ilha não tem nada. Só coqueiros. E nós dois.

Luana Piovani

– A escolha foi sua. ninguém me perguntou nada.
– Como é que eu ia saber que a pergunta não era hipotética? Que quando o cara me perguntou que livro, que disco e que mulher eu levaria para uma ilha deserta, não era pesquisa? Que ele ia interpretar não como sonho, mas como pedido?
– Você devia ter desconfiado do turbante.
– Se eu soubesse, teria pedido mantimentos. Enlatados, champanhe. Um gerador. Algum tipo de moradia, com som e mordomia. Talvez um bar. Sei lá. E 30 anos menos.
– Azar.
– Pô, Luana. Só um beijinho.
Não-ô.

Passa o tempo.
Eu e Luana Piovani conseguimos sobreviver na ilha deserta, mas a duras penas.
Dada a nossa diferença de idades e de preparo físico, é ela que trepa nos coqueiros para pegar o coco e constrói a cabana rudimentar que nos abriga, com camas de capim separadas.
Ela reluta, depois acaba cedendo aos meus insistentes pedidos e tira o sutiã, mas só para fazermos um anzol do fecho de metal.

Conseguimos pegar alguns peixes, usando mariscos como isca. Como não temos fósforos, fazemos fogo usando o CD do “Miles Davis” com “Sonny Rollins” e o “Horace Silver” para refletir a luz do sol num monte de gravetos e alimentando o fogo com as páginas de “O Grande Gatsby”.
Quando termina o papel, usamos capim seco, ou comemos peixe cru mesmo.
Improviso uma armadilha para roedores com o estojo plástico do CD. Não pegamos nada. A ilha é tão deserta que não tem nem roedor.
De noite, tento me aconchegar a Luana, para pelo menos nos protegermos do frio. Ela me repele.

Não-ô.

Turbante

Passam-se anos. Um dia, sinto Luana mordiscando a minha orelha. Me afasto.
Mesmo se quisesse alguma coisa com ela, não poderia. Estou anêmico e enfraquecido. A dieta de coco, peixe cru e água da chuva não me fez bem. E a Luana também está péssima.
A roupa esfarrapada deixa entrever quase todo o seu corpo curtido pelo sol e vento, mas eu nem olho mais. Ela insiste na orelha. Diz que já que estaremos lá para sempre e não tem remédio…
Eu me recuso. Se estivéssemos em qualquer outro lugar e não lutando para sobreviver daquele jeito, talvez rolasse alguma coisa entre nós. Mas naquelas condições estressantes, numa ilha deserta…
Pego o que sobrou de “O grande Gatsby”, as duas capas apodrecidas, e finjo que leio, para desencorajá-la.

Luis Fernando Veríssimo

– Pô, Luis Fernando.
Azar – suspiro.

 

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